quinta-feira, 19 de abril de 2012

Menina

Na noite acanhada
Ou no dia chuvoso
À luz das estrelas
Ou pingos gelados
Encontro seu corpo
Pedaços de amores
Juntados com cheiro
De grama cortada

E roupas manchadas
Do barro e da chuva
Repousam na relva
Ilusões seminuas
Lençóis de folhagem
Bordadas com hastes
De plantas rasteiras
E imaculadas...

E o simples abraço
O contato da pele
O beijo no peito
E o afago na nuca
Os corpos molhados
Alheios ao mundo
Inertes, dormindo
No meio do nada...

[Bones]

domingo, 8 de abril de 2012

Sussurro

Existirá dor tão forte,
Sofrimento desse porte
Ou uma morte que eu mereça?

Em minha cama, sentado
E o revólver, carregado
Apontado pra cabeça...

[Bones]

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Redenção em uma moeda


                                             

      ''Não pertenço a esse lugar'', pensava, enquanto o sol subia deslizando pelo céu. Sentado na calçada, encostado em um muro no meio da cidade as dez horas da manhã, depois de ter passado a noite em claro. O cheiro da calçada era um misto de urina, tabaco e vômito, e ainda assim olhava pro céu azul, sorrindo. Não tinha sido uma noite das piores, afinal, todas as pessoas que sempre compareciam ao bar estiveram ali por mais uma noite, depois de outro dia cansativo de vida monótona. Dentro do bar, depois de uns drinques, todos se tornavam interessantes. Era muito mais simples estabelecer um diálogo, e o rapaz sabia que para ele era muito mais que isso: era a única forma de fazê-lo.
      Olhou para os lados, procurando aqueles rostos familiares que há algumas horas estavam rindo com ele, conversando, debatendo. Tudo o que viu foi o que havia de mais insignificante naquele momento: uma velha senhora que passava, possivelmente indo à igreja. Vestia um suéter de lã cinzento, no qual não se podia distinguir se as manchas marrons faziam parte da estampa, ou era apenas sujeira. Saia preta, até abaixo dos joelhos, e meias de lã até as coxas. Trazia uma bolsa de couro surrado, pendendo no ombro direito.Os sapatos marrons eram abertos na frente, sem costura, e tinham manchas brancas e amareladas, provavelmente de vômito de todo tipo de criatura noturna, que se misturava nas calçadas daquela manhã de domingo. Os cabelos parcialmente brancos estavam divididos ao meio, e unidos atrás por uma presilha, que bem de perto se podia ler: ''Jesus Voltará''.
      A senhora passa, olhando de lado, mexe na bolsa, pega alguma coisa com o punho cerrado, e atira nos pés do rapaz, sem olhar. O objeto bate tilintando na calçada, rola e para bem ao seu lado: uma moeda.
      ''Será que ela tem tanto medo de mim, a ponto de tentar comprar minha indiferença com um pedaço de níquel?'', pensou o rapaz. Afinal, sua aparência não era das melhores. Os cabelos jogados no rosto, embaraçados, faziam sombra pras pupilas. As calças jeans rasgadas e a jaqueta de couro estavam sujas da poeira da calçada, e os coturnos lavados com seu próprio vômito, resultado de uma rápida rejeição do fígado a alguns copos a mais de álcool.
      A velha senhora continua seu caminho, com um semblante de dever cumprido. Provavelmente achava que estava fazendo algum bem para o rapaz estendido em meio a bitucas de cigarro e garrafas quebradas, e continua andando, batendo ruidosamente a sola do sapato contra o pavimento, o único som que se ouvia naquela rua, esquecida pelo resto da sociedade.
      ''Estamos na mesma situação'', pensou o rapaz. ''Roupas sujas, introspectivos, ambos buscando um sentido pra continuarmos aqui''. Então, como se seus braços tivessem o peso do mundo, retira o cabelo dos olhos, pega a moeda e a observa. Fecha os olhos, ainda tonto pelo álcool em seu organismo, e coloca a moeda na boca. O gosto metálico o agrada, e ele sorri. Engole a moeda, que  para em sua garganta, evitando o fluxo natural do ar na traquéia. Cai de lado, em convulsões, de olhos abertos.
      Perto dali, o sino começa a bater, chamando fiéis para mais algumas horas de conforto autossugerido: a missa estava começando.

[Bones]