sábado, 30 de junho de 2012

A prisão da consciencia

      Já não era mais tristeza. Era quase físico, opaco e pesado sobre sua cabeça. Mantinha um nascente sorriso no rosto apenas por equilíbrio; pois se seu semblante ficasse sério, as lágrimas seriam inevitáveis. Tudo o que tinha a sua frente era ferrugem gelada de barras de metal, de uma gaiola suspensa num barracão escuro. Escuridão negra com o mais profundo negror. O tamanho da gaiola não o permitia ficar em pé. Ficava na posição de lótus, e assim estava há muito, muito tempo. Anos talvez. Talvez séculos. Não recordava o que tinha feito de errado para ser mantido nessa estranha prisão, apenas solidão. Gelada e densa solidão.
      Não lembrava mais de como eram os rostos humanos. Apenas vozes. Uma voz de moça, distante, uma voz de criança... os rostos, porém, eram deformados, misturados a escuridão que o tomava por inteiro, que penetrava seus pulmões, fazendo pesar até mesmo o mais profundo suspiro, quase virando soluço, suspiro tremulo e pesado, aturdido, desmembrado. Por tantas e tantas vezes quisera morrer, porém a maldita esperança de ver novamente a luz o impedia de simplesmente abandonar sua existência. Ódio. Não, ainda não. Só esperança. Esperança de pelo menos encontrar uma saída rápida, algo como morrer dormindo... Até mesmo um enforcamento seria satisfatório, mas não tinha os apetrechos. Estava nu, desde que se lembrava. Não morreria de fome, pois toda vez que dormia, acordava com um maldito pedaço de pão a seus pés, e um copo d'água. Tentou várias vezes, mas por fim acabava cedendo a fome e a sede... Era tão fraco que não tinha nem mesmo coragem de morrer. Covarde. Já ouvira essa palavra várias vezes, e lembrou-se novamente. Nem mesmo da própria língua se lembrava, apenas umas ou outras palavras, perdidas, jogadas a esmo nas suas memórias.
      ''Covarde'', repetiu. Ouvir a própria voz era completamente estranho. Era metálico, arranhado. Até mesmo nisso se odiava. Era como se a voz não fosse sua. Era um som cavernoso, como rochas se precipitando em abismos escuros e secos. Não tinha nem mesmo certeza de que era sua voz; era apenas um som que retumbava nas grades e se diluía em profunda escuridão e silencio.
     Silencio. Era como a própria Morte tapando seus ouvidos.
     Tudo a todo momento era perturbador. Pensamentos mutilados, lembranças despedaçadas. Escuridão esmagadora. Silencio ensurdecedor.
     Que mal tinha ele feito, pra ser mantido nessa maldita jaula no meio do nada, como se estivesse congelado dentro de um bloco de gelo negro? Que atitude justificaria uma punição tão severa? Pois a pior punição é a solidão, a própria companhia martelando dentro da cabeça e salientando seus pontos fracos, suas facetas mais horríveis, é o pior calabouço que pode haver. Não tinha mais sentimentos por si, nem por ninguém. Pois todos os alguéns dentro de sua cabeça se tornaram faces disformes, fantasmas que ainda seguravam o maldito cordão de esperança, que o impedia de ter seu alívio nos braços de Tanatos.
     Decidiu dar um basta. Ainda com o maldito pedaço de sorriso no rosto, colocou o pulso esquerdo na boca, entre os caninos.
     Mordeu. Cada vez mais forte. Puxou o pescoço pra trás, como um urubu funesto faz com a carne pútrida; arrancou um pedaço da pele do pulso. Dor. Ainda assim, dor mais suportável que a que sentia por dentro. Mordeu de novo. Arrancou outro pedaço. Um gosto de sangue, muito parecido com o gosto do nó que tinha na garganta, o nó do choro iminente. Sentiu tontear. Continuou devorando o próprio pulso, até estar apenas no osso do braço. A dor se tornara maior, muito maior. Foi para o outro braço. Fez a mesma coisa. Mas, antes de concluir, desmaiou. Para sempre.


[Bones]