quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Aos Amigos que Escrevem

     É com o entusiasmo de um bêbado que pego na pena novamente, tentando esclarecer pro mundo o que pra mim mesmo é um emaranhado de incertezas; a minha própria cabeça. Resolvi escrever novamente apenas pra não perder o hábito, acabar transformando em ferrugem a única coisa que eu acho que faço moderadamente bem. Pensamentos e ideias na cabeça que não passam de insetos impertinentes, cruzando o caminho de minha existência gelada e me impelindo para o branco novamente, o branco. O branco da folha vazia, da página que aguarda o depósito de palavras. Palavras tristes, em sua maioria, mas de que adianta a alegria para ser contada? Alegria é para ser sentida, enquanto o sentimento obscuro que rasteja entre as sombras da alma, merece ser pego e dissecado até o fim, até que morra de alguma forma, embora ainda assuste, empalhado e eternizado em palavras amargas.
      Não raramente tropeço na falta de léxico, da palavra mesquinha que cisma em se esconder e não me deixa mostrá-la ao mundo, impedindo assim que eu mostre a mim mesmo. A palavra por si não é nada, e o nada em palavras é lindo de ser descrito. A palavra que não se encontra é a mais procurada, e quem compartilha comigo esse hábito melancólico de se esgueirar pelas vias funestas da língua, entende o que eu estou tentando dizer. É a palavra encontrada a que vale mais; não obstante, a cascata de vocabulário inútil que brota do nada dentro da cabeça geralmente prevalece, e todo aquele desenvolvimento que parecia tão fácil, chamado pelos principiantes de inspiração, acaba murchando ante a severidade do vocábulo que teima em ficar oculto.
     É pra vocês que escrevo, meus amigos. Todos esses que desdobram e decodificam sentimentos pra colocar no papel. Todos os que se utilizam das formas mais fúnebres, violentas, meigas ou simples pra descrever qualquer que seja o sentimento. Para todos os que compartilham a tristeza e a certeza de que o texto jamais será perfeito, e que é muita emoção para ser descrita em palavras, qualquer que seja a emoção ou a língua.
     Obrigado aos que me entendem, e me perdoem os que não me entendem. Vou agora saindo de canto desse punhado de pensamentos a esmo, com o qual apenas brinco tentando decifrar, mas sempre deixo do jeito que encontrei.
      Aos que escrevem apesar de tudo, eu tiro o meu chapéu.

[Bones]

sábado, 30 de junho de 2012

A prisão da consciencia

      Já não era mais tristeza. Era quase físico, opaco e pesado sobre sua cabeça. Mantinha um nascente sorriso no rosto apenas por equilíbrio; pois se seu semblante ficasse sério, as lágrimas seriam inevitáveis. Tudo o que tinha a sua frente era ferrugem gelada de barras de metal, de uma gaiola suspensa num barracão escuro. Escuridão negra com o mais profundo negror. O tamanho da gaiola não o permitia ficar em pé. Ficava na posição de lótus, e assim estava há muito, muito tempo. Anos talvez. Talvez séculos. Não recordava o que tinha feito de errado para ser mantido nessa estranha prisão, apenas solidão. Gelada e densa solidão.
      Não lembrava mais de como eram os rostos humanos. Apenas vozes. Uma voz de moça, distante, uma voz de criança... os rostos, porém, eram deformados, misturados a escuridão que o tomava por inteiro, que penetrava seus pulmões, fazendo pesar até mesmo o mais profundo suspiro, quase virando soluço, suspiro tremulo e pesado, aturdido, desmembrado. Por tantas e tantas vezes quisera morrer, porém a maldita esperança de ver novamente a luz o impedia de simplesmente abandonar sua existência. Ódio. Não, ainda não. Só esperança. Esperança de pelo menos encontrar uma saída rápida, algo como morrer dormindo... Até mesmo um enforcamento seria satisfatório, mas não tinha os apetrechos. Estava nu, desde que se lembrava. Não morreria de fome, pois toda vez que dormia, acordava com um maldito pedaço de pão a seus pés, e um copo d'água. Tentou várias vezes, mas por fim acabava cedendo a fome e a sede... Era tão fraco que não tinha nem mesmo coragem de morrer. Covarde. Já ouvira essa palavra várias vezes, e lembrou-se novamente. Nem mesmo da própria língua se lembrava, apenas umas ou outras palavras, perdidas, jogadas a esmo nas suas memórias.
      ''Covarde'', repetiu. Ouvir a própria voz era completamente estranho. Era metálico, arranhado. Até mesmo nisso se odiava. Era como se a voz não fosse sua. Era um som cavernoso, como rochas se precipitando em abismos escuros e secos. Não tinha nem mesmo certeza de que era sua voz; era apenas um som que retumbava nas grades e se diluía em profunda escuridão e silencio.
     Silencio. Era como a própria Morte tapando seus ouvidos.
     Tudo a todo momento era perturbador. Pensamentos mutilados, lembranças despedaçadas. Escuridão esmagadora. Silencio ensurdecedor.
     Que mal tinha ele feito, pra ser mantido nessa maldita jaula no meio do nada, como se estivesse congelado dentro de um bloco de gelo negro? Que atitude justificaria uma punição tão severa? Pois a pior punição é a solidão, a própria companhia martelando dentro da cabeça e salientando seus pontos fracos, suas facetas mais horríveis, é o pior calabouço que pode haver. Não tinha mais sentimentos por si, nem por ninguém. Pois todos os alguéns dentro de sua cabeça se tornaram faces disformes, fantasmas que ainda seguravam o maldito cordão de esperança, que o impedia de ter seu alívio nos braços de Tanatos.
     Decidiu dar um basta. Ainda com o maldito pedaço de sorriso no rosto, colocou o pulso esquerdo na boca, entre os caninos.
     Mordeu. Cada vez mais forte. Puxou o pescoço pra trás, como um urubu funesto faz com a carne pútrida; arrancou um pedaço da pele do pulso. Dor. Ainda assim, dor mais suportável que a que sentia por dentro. Mordeu de novo. Arrancou outro pedaço. Um gosto de sangue, muito parecido com o gosto do nó que tinha na garganta, o nó do choro iminente. Sentiu tontear. Continuou devorando o próprio pulso, até estar apenas no osso do braço. A dor se tornara maior, muito maior. Foi para o outro braço. Fez a mesma coisa. Mas, antes de concluir, desmaiou. Para sempre.


[Bones]
   
 

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Menina

Na noite acanhada
Ou no dia chuvoso
À luz das estrelas
Ou pingos gelados
Encontro seu corpo
Pedaços de amores
Juntados com cheiro
De grama cortada

E roupas manchadas
Do barro e da chuva
Repousam na relva
Ilusões seminuas
Lençóis de folhagem
Bordadas com hastes
De plantas rasteiras
E imaculadas...

E o simples abraço
O contato da pele
O beijo no peito
E o afago na nuca
Os corpos molhados
Alheios ao mundo
Inertes, dormindo
No meio do nada...

[Bones]

domingo, 8 de abril de 2012

Sussurro

Existirá dor tão forte,
Sofrimento desse porte
Ou uma morte que eu mereça?

Em minha cama, sentado
E o revólver, carregado
Apontado pra cabeça...

[Bones]

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Redenção em uma moeda


                                             

      ''Não pertenço a esse lugar'', pensava, enquanto o sol subia deslizando pelo céu. Sentado na calçada, encostado em um muro no meio da cidade as dez horas da manhã, depois de ter passado a noite em claro. O cheiro da calçada era um misto de urina, tabaco e vômito, e ainda assim olhava pro céu azul, sorrindo. Não tinha sido uma noite das piores, afinal, todas as pessoas que sempre compareciam ao bar estiveram ali por mais uma noite, depois de outro dia cansativo de vida monótona. Dentro do bar, depois de uns drinques, todos se tornavam interessantes. Era muito mais simples estabelecer um diálogo, e o rapaz sabia que para ele era muito mais que isso: era a única forma de fazê-lo.
      Olhou para os lados, procurando aqueles rostos familiares que há algumas horas estavam rindo com ele, conversando, debatendo. Tudo o que viu foi o que havia de mais insignificante naquele momento: uma velha senhora que passava, possivelmente indo à igreja. Vestia um suéter de lã cinzento, no qual não se podia distinguir se as manchas marrons faziam parte da estampa, ou era apenas sujeira. Saia preta, até abaixo dos joelhos, e meias de lã até as coxas. Trazia uma bolsa de couro surrado, pendendo no ombro direito.Os sapatos marrons eram abertos na frente, sem costura, e tinham manchas brancas e amareladas, provavelmente de vômito de todo tipo de criatura noturna, que se misturava nas calçadas daquela manhã de domingo. Os cabelos parcialmente brancos estavam divididos ao meio, e unidos atrás por uma presilha, que bem de perto se podia ler: ''Jesus Voltará''.
      A senhora passa, olhando de lado, mexe na bolsa, pega alguma coisa com o punho cerrado, e atira nos pés do rapaz, sem olhar. O objeto bate tilintando na calçada, rola e para bem ao seu lado: uma moeda.
      ''Será que ela tem tanto medo de mim, a ponto de tentar comprar minha indiferença com um pedaço de níquel?'', pensou o rapaz. Afinal, sua aparência não era das melhores. Os cabelos jogados no rosto, embaraçados, faziam sombra pras pupilas. As calças jeans rasgadas e a jaqueta de couro estavam sujas da poeira da calçada, e os coturnos lavados com seu próprio vômito, resultado de uma rápida rejeição do fígado a alguns copos a mais de álcool.
      A velha senhora continua seu caminho, com um semblante de dever cumprido. Provavelmente achava que estava fazendo algum bem para o rapaz estendido em meio a bitucas de cigarro e garrafas quebradas, e continua andando, batendo ruidosamente a sola do sapato contra o pavimento, o único som que se ouvia naquela rua, esquecida pelo resto da sociedade.
      ''Estamos na mesma situação'', pensou o rapaz. ''Roupas sujas, introspectivos, ambos buscando um sentido pra continuarmos aqui''. Então, como se seus braços tivessem o peso do mundo, retira o cabelo dos olhos, pega a moeda e a observa. Fecha os olhos, ainda tonto pelo álcool em seu organismo, e coloca a moeda na boca. O gosto metálico o agrada, e ele sorri. Engole a moeda, que  para em sua garganta, evitando o fluxo natural do ar na traquéia. Cai de lado, em convulsões, de olhos abertos.
      Perto dali, o sino começa a bater, chamando fiéis para mais algumas horas de conforto autossugerido: a missa estava começando.

[Bones]

terça-feira, 6 de março de 2012

A Fruta e o Menino


                                                   

                Menino debaixo do pé de fruta, olhando desejosamente para um galho no qual se encontrava a mais bela entre todas. Se impunha vermelha na sombra, parcialmente oculta pela folhagem, despertando o desejo não apenas de matar sua fome, mas de pegá-la, observá-la, saboreá-la com os olhos, acariciá-la,sentir o cheiro, o toque na mão. Ali estava o menino desejando o inalcançável, depois de uma tarde cansativa de criança.
                Cogitou derrubá-la lançando algum objeto, mas temeu acertá-la em cheio e precipitá-la contra o chão, destruindo em fração de segundos o que a natureza havia levado anos para construir, pois, pensava ele, aquela era a fruta que a árvore havia por anos de esforço finalmente criado; a Fruta Perfeita. Não merecia ser destruída de uma maneira tão rude e rápida.
                Esticava os braços, como que tentando alcançar com as próprias mãos. No fundo ele sabia que sua altura não permitia, e a distancia do galho o fazia ver que não conseguiria simplesmente pegar. Esticava os braços, como se o seu esforço e desejo criassem mãos invisíveis, acariciando a fruta para depois pegá-la e traze-la para mais perto de seu desejo, de seu egoísmo. Baixou os braços, e se contentou apenas em olhar. O modo como o sol dançava entre as folhas e tocava de forma tênue a casca vermelha, fazendo desenhos brilhantes na fruta que teimava em manter sua indiferença com relação ao menino.
                Estava tarde. O menino se deixara tragar pelo desejo do impossível e esquecera de voltar para casa. Passara horas observando o objeto inalcançável de seu desejo, seu egoísmo mais instintivo, ainda não descoberto por sua mente infantil.
                Então a fruta, com todo seu orgulho, como se respondesse ao breve deslize de atenção do menino, cede ao balanço do galho ao vento e cai, despedaçando-se diante de seus pés. Estava podre. O menino sorri, vira as costas e vai embora.

[Bones]

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012


  MÍDIA

Para cada hipócrita mente
uma gota de sangue amolada
em forma de estilete
penetra pelos ouvidos
e a dor lancinante que sente
a cada fatia arrancada
molda o notável tapete
de tecido encefálico ruído...

Coágulos de pensamentos
abatem o raciocínio
a navalha de massa vazia
tortura sem que se note
forma cortes purulentos
e convulsões de fascínio
alfinete que se enfia
nas órbitas do magote...


[Bones]